A Grande Paixão: Passado e Presente da Lapinha Santa Clara
- memoriaskariri
- 4 de jul. de 2023
- 9 min de leitura
Por: Bianca Duarte, Denilson Rodrigues, Rafael Silva e Victória Ellen
"Lapinha Santa Clara, a grande paixão”, estava escrito na placa gigante fixada à frente da casa. Ali dentro, à nossa espera, o Mestre Ligeirinho nos aguarda para a entrevista. Entre um boa-tarde e outro, ele não perde tempo e já nos convida a conhecer a coleção de troféus da Lapinha guardados em um imenso armário de madeira antiga, localizado na sala de estar, a “sala do santo”. Os adereços e as imagens sacras nos entregam a religiosidade e o lar sagrado que aquela casa representa. No parapeito que dá acesso ao corredor, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus e de Nossa Senhora das Candeias. As imagens, em preto e branco, denunciam ao visitante que elas já estão aqui há algumas dezenas de anos. São originárias do início do século XX, presente dado pelo patriarca de Juazeiro do Norte: Padre Cícero Romão Batista. O santo popular, hoje reconhecido Servo de Deus pela Igreja Católica, foi um grande influenciador e propagador das renovações ao Sagrado Coração de Jesus. As imagens foram dadas à dona Teodora, precursora da Lapinha Santa Clara.

Com 110 anos de fundação, a Lapinha Santa Clara é fruto de um sonho de uma adolescente de apenas 12 anos. Um sonho que perpassou origens e que resiste até hoje. Originalmente chamada de Lapinha JMJ, em referência à Sagrada Família de Nazaré (Jesus, Maria e José), a sua primeira apresentação aconteceu na noite de 24 de dezembro de 1912. Foi na mesma casa que até hoje é sede do grupo. Naquele dia, com a presença de Padre Cícero, 24 pessoas compuseram a primeira dança daquela que viria ser a lapinha mais antiga de Juazeiro do Norte.
Mestre Ligeirinho conta que o desejo de dona Teodora em fundar a lapinha, nasceu após sua participação na lapinha da Beata Alexandrina, em 1911. "O pai de dona Teodora não queria deixar, aí ela foi pedir permissão ao Padre Cícero. Beata Alexandrina enxergou o potencial dela, porque ela rapidamente aprendeu os passos e as músicas, e foi com Teodora à casa do padre. Padre Cícero aceitou e mandou chamar o pai dela. Ele disse ao pai de dona Teodora: 'olha, não tem história não. Quem decide sou eu e você trate de ajeitar os preparo e bote a menina para dançar, para ela fazer a lapinha dela'. E foi dito e feito. O véi comprou a zabumba e as outras coisas, e a lapinha aconteceu". No dia 25, a apresentação da lapinha aconteceu na casa de Padre Cícero, que hoje é um museu.
Por amor e apreço à Lapinha, fundada pela mãe, após a morte de dona Teodora, dona Tatai, mais tarde Mestra Tatai, assumiu a responsabilidade de manter a tradição. No entanto, depois da morte de dona Teodora, por conta da sua devoção à Santa Clara de Assis e pelo nome da rua onde morava, o grupo foi batizado de Lapinha Santa Clara.
A lapinha de hoje
A permanência da Lapinha Santa Clara é fruto de um amor latente pela cultura e pela tradição. Quando Mestra Tatai resolveu assumir o legado de Dona Teodora, não foi só o amor pela mãe que a motivou, o apreço pela lapinha já estava enraizado em seu coração. Com Mestra Vanda, neta de Teodora e filha de Tatai, não foi diferente. Acostumada desde criança a participar do grupo, quando sua mãe faleceu e pediu para que ao menos realizassem a lapinha daquele ano já que estava tudo pronto, foi praticamente impossível para Mestra Vanda não manter a tradição que lhe acompanhou por toda vida.
Em meio a queda no número de grupos dessa manifestação cultural, manter essa tradição é mais uma prova de amor e resistência. Mestre Ligeirinho, marido de mestra Vanda e intimamente ligado a essa tradição da qual participa desde criança lamenta: “Juazeiro já chegou a ter 28 lapinhas, mas hoje em dia apenas 6 grupos conservam a tradição, as donas da lapinha morriam e ninguém continuava, a tradição foi se perdendo. Eu costumo dizer que Lapinha não é só eu pegar e botar menina pra dançar e dizer que fiz uma lapinha, a lapinha é manter o ritual por completo”.

Valorizando essa tradição, os mestres Wanda e Ligeirinho buscam honrar e manter vivo o amor de Dona Teodora e Dona Tatai pela lapinha. Em frente aos quadros das duas primeiras mestras, ligeirinho fala em tom orgulhoso: "Desde a criação da lapinha de Santa Clara em 1912, a gente não passou um único ano sem realizar apresentações”. Nem a pandemia foi capaz de aplacar a paixão dos mestres pela tradição. “Reduzimos o grupo para 15 meninos. Reduzimos, mas não deixamos de fazer. Colocamos todo mundo de máscara e com as igrejas fechadas, os meninos dançaram aqui em casa mesmo”. Atualmente o grupo comandado por mestre Ligeirinho e mestra Vanda concentra cerca de 40 brincantes de 0 a 16 anos, sendo de acordo com o mestre, o maior grupo da cidade.
Crianças de várias partes da cidade compõem o grupo. A lapinha busca acolher essas crianças, não só prepará-las para uma apresentação, mas para a vida. “A gente pega o menino mais impossivel. A gente gosta de menino danado, aquele que a mãe diz ‘esse menino é impossível dentro de casa’, eu digo traga. É isso que eu quero. Depois que pega intimidade e confiança o menino me chama de tio, chama a Vanda de tia, é gratificante ajudar a educar essas crianças. A gente tem brincantes de todo lugar da cidade e buscamos cuidar dessas crianças da melhor maneira, porque elas estão sob nossa responsabilidade e os pais não tem dever de arcar com nada. Então, nós que fazemos as roupas, providenciamos o transporte, às vezes criamos concursos para que elas possam se divertir ainda mais”.
Apesar dos esforços dos mestres e do fato da região do Cariri ser um grande polo cultural, manter a tradição viva ainda é um grande desafio. A falta de investimentos efetivos na cultura local, torna o ambiente inóspito para o desenvolvimento e preservação dos grupos de manifestações populares. Para manter a lapinha de Santa Clara viva, a Mestra Vanda e o Mestre Ligeirinho contam com a ajuda do Serviço Social do Comércio (Sesc) e da Secretária de Cultura de Juazeiro do Norte. “Eles não nos dão dinheiro, mas nos ajudam. O Sesc nos inscreve nas competições e nos chamam para participar dos editais anuais para as apresentações, aí quando aparece essas festas que dá pra incluir o grupo e tem um cachê, a gente já guarda o dinheiro para comprar material para a Lapinha. A Secretaria de Cultura, quando pega uma gestão que se organiza, eles também ajudam a gente, por exemplo, com transporte para irmos a competições fora. Esse tipo de trabalho não é fácil, mas a gente tem foco e amor para dar continuidade”.
Falando em continuidade, o futuro da lapinha ainda é meio incerto. “Não tem um sucessor. Esse tipo de trabalho não é fácil. A gente tem que pegar uma pessoa que tenha três qualidades. Três. E é difícil. A primeira qualidade é que goste do que faz. A segunda qualidade é que seja uma pessoa de harmonia. E a terceira é não ser ganancioso ou capitalista. Mas confiamos em Deus que a gente vai encontrar”.
Bendito és tu entre as mestras

Se falarmos de Damião Felipe é provável que os vizinhos demorem um pouco para identificar. Agora, se chegar perguntando por Ligeirinho, a identificação é certa! O nome curioso se deu da “rapidez”, enquanto atuava como agente de saúde. “O nome veio, porque eu só trabalho correndo, trabalhava no hospital, aí quando botava pra morrer, corria chamava ligeiro, depressa. Aí foi pegando, foi ficando e não teve mais jeito de tirar”.
Ligeirinho, 51, é um homem em meio a uma tradição criada por mulheres, da menina Teodora a dona Tatai, foram elas quem deram início e deixaram seu legado para o grupo que se tornou cultura e tradição popular.
Ligeirinho, começou a participar da Lapinha de Santa Clara em 2008, um ano antes da morte da Mestra Tatai, mas ele lembra que já no início foi bem recebido. “Ainda passei um ano convivendo com dona Tatai, nós vivendo tudo junto, eu, ela e seu Manel na mesma casa. Em 2009, no mês de dezembro, ela adoeceu, foi hospitalizada e após alguns dias internada, no dia 11 de dezembro, ela faleceu”.
Casado com Mestra Vanda, filha de dona Tatai, antes de participar da Lapinha de Santa Clara, Ligeirinho lembra que participava da Lapinha de dona Tôta, onde aprendeu a fazer as asas e solidéus.

Desde menino, Damião Felipe, ou melhor, Ligeirinho, já demonstrava talento com a feitura de flores. “Eu aprendi também fazendo isso. Quando eu era criança minha avó ia com minha tia para missa no franciscano . Aí eu derrubava as capelas mais fáceis e desmanchava, colocava tudo na sala, no chão, aí ia colar de novo, montava e recortava. Ai daquela eu fazia outra recortando”. Nesse exercício, que era uma "brincadeira", chegou a ser pego pela tia, mas a avó o protegeu e pediu ao pai do menino que comprasse material para que ele treinasse o ofício. Só não imaginava a avó que o neto transformaria aquilo em algo grandioso. Atualmente, é Ligeirinho quem costura as roupas usadas pelos participantes da Lapinha Santa Clara. “Eu cheguei aqui já tava tudo no jeito, então eu fui só dar continuidade. Hoje, quem confecciona as roupas da Lapinha sou eu, ou seja nós não temos cópia”.
Chamado popularmente de mestre, Ligeirinho é o único na modalidade a coordenar uma lapinha. “É, só tem eu. E aqui só teve outro mestre de lapinha na antiguidade que a gente chamava Seu Antônio. A lapinha dele era diferente, era só de túnica e tinha uns pandeiro, ele tocava com aqueles maracás de ferro, de bandeirinha.” Ligeirinho demonstra ainda humildade quando chamado de “Mestre” e faz referência à esposa. “Eu vou ser sincero, eu não chego a dizer que eu sou mestre. Eu costumo dizer que eu ajudo a coordenar a lapinha. A Mestra é a minha esposa, que é a sucessora da mãe dela, tá entendendo? Eu não me considero sucessor.
Eu me considero uma pessoa que vem trabalhando dentro da cultura para não deixar morrer
O Ritual
Muitas crianças passam a noite de natal com a família, ceando e ganhando presentes. Mas para quem dança lapinha, o dia 24 de dezembro tem cheiro de cultura. Meia noite, hora do nascimento do menino Jesus, de portas abertas, a casa fica repleta de anjos, pastores e reis. Alguns vestem azul, outros vermelho. As crianças imitam aqueles que testemunharam o nascimento do filho de Deus - assim, tem início a primeira apresentação da lapinha.

A primeira residência a receber a visita dos brincantes é a da Mestra. Com maracás, uma espécie de chocalho, cheios de fitas nas mãos, dois para lá, dois pra cá, uma procissão se forma. O eco da zabumba explode, avisando que é noite de natal.
As vozes em uníssono cantam:
Boa noite meus senhores todos
e boa noite, senhoras também
Somos pastoras, pastorinhas belas
que humildemente vamos pra Belém
São duas filas, chamadas de cordões: o cordão vermelho, ou "encarnado”, simboliza Jesus e o cordão azul, simboliza Nossa Senhora. “Na lapinha, a gente junta os anjos, os pastores, os animais, as flores e os astros pra louvar o menino Deus”.
As meninas usam faixas, cada uma com seu título. “Tem a Mestra, a Contra-mestra, o Sol, a Lua, a Estrela D'alva, tem o Cruzeiro do Norte, o Cruzeiro do Sul, tem a Borboleta, a Florista, a Cestinha”. Há ainda os anjos, os reis magos, os pastores, as ciganas, os caboclinhos - algumas destas personagens nem estão citadas na Bíblia, mas a tradição oral e cultural do povo de Deus sempre as colocou, já que o menino Jesus, conforme as escrituras, teria nascido para todos. Na Lapinha Santa Clara, também são feitas justas homenagens ao Padre Cícero Romão Batista e àquela que dá nome ao grupo: Santa Clara de Assis.
Há Lapinhas fora do Cariri, cada uma com suas peculiaridades. Mas em Juazeiro do Norte, depois da apresentação na casa da Mestra, a primeira visita é feita à Basílica de Nossa Senhora das Dores, Igreja Matriz da cidade.

Do dia 25 de dezembro até o dia 6 de janeiro, a peregrinação não para. “É a mesma caminhada dos pastores, são treze dias de caminhada”. Onde tiver presépio e os donos da casa quiserem, as pastorinhas e os pastorinhos estarão lá para cantar ao menino Jesus, sempre pedindo licença ao dono do presépio, que é São José. “Ele é o protagonista na lapinha, ainda que se fale pouco dele no contexto”.
Cada um dos brincantes tem seu momento de brilhar. Chapéu de palha na cabeça, cajado na mão, o Pastor Perdido sai da fila, entoando sua solitária canção:
Eu sou um pobre pastor
que anda pelas campinas
Ando procurando flores
pra trazer pro Deus Menino
Cada um recita seu monólogo, adora o menino Jesus e volta ao seu lugar para cantar os benditos com os companheiros. Noite Feliz é um clássico, São José de Porta em Porta recorda a luta da Sagrada Família para encontrar uma casa em Belém. Entre cantos e encenações, o ritual é concluído com um Pai-nosso e uma Ave-Maria. Mas ai de quem não der merenda para os brincantes. “Eles exigem, dizendo - oxi, nós cantamos, queremos o lanche”.
Chegado o Dia de Reis, 6 de janeiro, é o momento da despedida. Acontece a tradicional queima da lapinha. É um dia todo na rua, andando por todas casas para fazer uma fogueira com as palhas do presépio. Todos formam uma grande roda em torno da fogueira e, com sentimento de despedida, os pastorinhos cantam:
Essas palhinhas que estão se queimando
É a nossa lapinha que está se acabando
O dia 6 pra nós é a descoberta do menino Jesus que os reis conseguiram contemplar e a gente queima aquelas palhas simbolizando vida nova, abrindo um ciclo
Anualmente, no período do natal, o ritual é o mesmo. As lapinhas ainda participam de outros momentos de forma extraordinária, como as romarias e os concursos realizados no município. Mas é sempre no natal que as cores da cultura caririense brilham com mais força. E no coração dos brincantes, antes mesmo das palhas terminarem de queimar, um verso ecoa: Até para o ano, se nós vivo for!
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