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A Jurema dos Oitis

  • Foto do escritor: memoriaskariri
    memoriaskariri
  • 7 de jul. de 2022
  • 9 min de leitura

Texto: Marília Medeiros




O professor de Administração Pública e da especialização em Permacultura, Eduardo Vivian, da Universidade Federal do Ceará, tem o xamanismo como religião de fé. Ele mantém num sítio do Crato, a Morada da Jurema, onde pratica rituais xamânicos urbanos, desenvolvendo relações com a natureza e a ancestralidade da região.

Entre o céu e a terra encontra-se o homem. Firme na terra, mas em busca do céu. Seja pela crença em um Deus, seja pela necessidade de ir além espiritualmente. Seja para entender o que tem fora, seja para entender o que tem dentro de si. Desde o início do mundo os homens unem-se para viver, estando sempre em algo maior que eles, assim, faz surgir um povo e a sua identidade. Povos com suas tradições, culturas e crenças, ligados às suas terras, as suas vozes, uns aos outros. Muitos povos de muitas formas, com diferentes nomes e práticas, mas todos eles com um ponto em comum poderoso: a conexão.

Na tradição siberiana “Xamã” é aquele que cura pelo êxtase, um estado alterado de consciência. Cura da matéria e do espírito, e, para isso, conecta-se com a natureza e suas medicinas, os sons e suas vibrações, o pensamento e o que ele pode captar - a dança e a energia, e a concentração mental para elevar-se e poder ver a si próprio. Cura pela conexão com a terra para chegar ao céu. O Xamanismo, termo que se consolidou pelos antropólogos, é o estudo da religiosidade dos povos tradicionais que existem ao redor do mundo.

Da Sibéria ao Brasil encontra-se essas práticas, principalmente nas florestas e recentemente nas cidades. Esse processo de chegada a cidade denomina-se “Xamanismo Urbano”, sendo a transposição dessas técnicas para o contexto fora do lugar onde ela se origina. Pelo contato e aprendizado, das técnicas, processos, rezos, cantos, dos instrumentos de poder, formam-se espaços que realizam esses momentos ritualísticos.

O professor Eduardo Vivian, 40 anos, da Universidade Federal do Cariri, conheceu o Xamanismo ainda em seu estado de origem, o Rio Grande do Sul, a partir dos chamados “xamanismo urbano”, conhecendo diversos espaços adquirindo conhecimento das técnicas medicinais aplicadas nos rituais. Posteriormente, o professor buscou conhecer a tradição diretamente com os povos indígenas do Cariri.

Desde o início, se identificou com os rituais e com o uso de plantas psicoterapeutas. Ele teve a oportunidades de vivenciar uma realidade bem mais ampliada, de mergulhar no seu subconsciente, reviver sonhos antigos e dar significados a eles. Disse que encontrou a sua ancestralidade indígena e percebe ela cada vez mais viva. Dentro desse intenso processo e com essas experiências que fortaleceram suas crenças espirituais, começou a sentir a necessidade de manter-se nesse trabalho, mas, dessa vez, “com um objetivo maior de servir ao próximo e expandir esse conhecimento com os irmãos”.

No Cariri, terra mística e de identidade própria e forte, a tradição vive. Além das igrejas e romarias, no íntimo daqueles que ainda atentam e escutam o som do maracá e do tambor da tribo Kariri. Eles resistem e seguem a voz de suas ancestralidades. Eduardo Cunha é fundador e participante da Morada da Jurema, espaço xamânico, localizado no

Baixio dos Oitis, em Crato, Ceará, nos conta um pouco de sua experiência e da memória que carrega a terra que hoje se faz de casa para vários juremeiros.


O chamado da jurema


O espaço é misterioso e encantado desde o início. A Morada foi descoberta de maneira sensível. Eduardo conta que, casualmente, passando pela zona rural do Crato, viu o terreno com sua esposa. Como muitas das coisas que são para ser, logo sua vista alcançou a placa de ‘vende-se’ afixada ao local. Não estavam planejando comprar, mas mesmo assim comunicaram-se com o proprietário. Ele facilitou bastante e o professor comprou o sítio.

No primeiro contato com a terra, o chamado ecoou novamente - ela queria ser usada para algo maior, segundo ele. “Tinha algumas Juremas no sítio, aqui é a Morada da Jurema né, onde a Jurema está presente”.

Jurema é uma planta com propriedades psicoativas, tradicional nos rituais das tribos indígenas do Nordeste brasileiro. Assim, o nome surgiu do próprio lugar, evidenciando a forte conexão com os ancestrais. Buscando aprender mais sobre a terra e seu misticismo, Eduardo fez contato com a tribo indígena Fulni-ô, da região. Logo aprendeu a tradição e começou a desenvolver o trabalho com a bebida da Jurema.

“O espaço foi se construindo com a energia da região e atenta aos sinais da natureza. Cresceu aos poucos e é resultado da sinergia de pessoas ligadas com suas espiritualidades. Está vivo desde o ano de 2016, com dois rituais por mês e se organizou como uma associação. O que a gente optou no início foi fazer um processo mais coletivo, em que as pessoas participassem mais, e a gente escolheu o formato de associação”, explica. É para todos aquele que quiserem conhecer, trabalhar junto, e está de portas abertas e se estruturando aos poucos para fazer isso acontecer. Em entrevista com o Eduardo, ele nos fala sobre como é continuar traçando os caminhos xamânicos aqui na região do Cariri.

Eduardo conta que a “voz” que o chamava ainda era forte, queria ser notada e trabalhada. Sentiu o chamado da Jurema, e a partir de então, fez contato com a tribo indígena Fulni-ô. Aprendeu a tradição e começou a desenvolver o trabalho com a bebida da Jurema.

O chamado foi atendido e hoje, a Jurema e sua energia, são trabalhadas e vividas. Assim como outros preparados tradicionais do xamanismo, como por exemplo o chá Ayahuasca, capaz de concentrar os indivíduos e redimensionar a realidade, ativando os sentidos das pessoas. O Rapé que é um pó, costumeiro em tribos amazônicas e caboclos da floresta, é utilizado para fins medicinais e cerimoniais. Sananga, colírio natural, que possibilita maior percepção visual.

Além de toda a ritualística, a fogueira, os rezos para os ancestrais, para os elementos da natureza, os cânticos com tambor, com maracá, ícaros, cantos para chamar a força da medicina no espaço. São usados com um objetivo maior de proporcionar um exame, e um conhecimento de mundo e do “eu”, diretamente do contato com a terra. “É um trabalho muito bonito, muito afetuoso, muito amoroso, de muito cuidado, com muita conexão com a terra com a natureza”, afirma Eduardo.


Visão sentimental


“O caminho vermelho é o caminho do coração”, uma máxima do xamanismo. Ela resume o sentimento do xamanismo, uma prática coletiva, mas ao mesmo tempo individual, de conexão com quem veio antes (o povo vermelho, os indígenas) onde cada um dentro de si, vai se encontrando em um todo. “A espiritualidade é muito mais que uma doutrina. É um lugar dentro do ser, presente para aqueles que se veem como espíritos. E muitas vezes não é fácil, enraizar-se nesse solo. A dificuldade que se apresenta é clara. Com as novas visões que as medicinas proporcionam constantemente o indivíduo se ver sendo encarado por si mesmo, pela sua própria sombra, seus defeitos, qualidades e atitudes. Não é um processo apenas difícil, é doloroso”, conta Eduardo.

Ele fala sobre o momento em que conheceu o xamanismo:

“Eu conheci a partir de práticas de rituais de Xamanismo Urbano. Com alguns grupos, comecei a frequentar e fui tomando conhecimento das medicinas. Então, comecei a conhecer, ir atrás de alguns desses espaços que se faz Xamanismo Urbano, e, a partir daí, foi quando começou a ter o meu contato com o xamanismo, comecei a buscar também outras práticas diretamente nesses povos, indígenas, e tal, pra conhecer a fundo como é que isso funciona.”

Ele lembra que, desde 1990. tem conexões com os trabalhos espirituais. Antes, se dedicou bastante tempo ao espiritismo. “ E dentro de mim começou a ter um chamado, um chamado muito forte. Uma necessidade de fazer alguma coisa, uma busca espiritual, e me conectar com algo assim mais espiritual, e poder trabalhar, poder servir, isso sempre teve muito forte dentro de mim, ajudar os irmãos, ajudar outras pessoas. E ai, quando eu conheci as medicinas, o xamanismo, foi um processo muito intenso que aconteceu dentro de mim. Um chamado que dizia, ‘é isso, tem que trabalhar com isso’. Então das primeiras vezes que eu tomei o chá, que você tem outra percepção da realidade, senti muito forte que eu deveria me conectar, vi muito, me senti muito conectado com a ancestralidade indígena, muito forte dentro de mim, e comecei a buscar cada vez mais, e me fortalecer e firmar nesse caminho que é por aí mesmo que eu tinha que seguir.”

Eu pedi para ele descrever momentos mais impactantes que viveu dentro do ritual. Ee respondeu:

“Quando a energia [do chá] vem chegando, parece que você vai rompendo o véu entre o consciente e o subconsciente. Teve um dia, quando eu senti a energia chegar e vi que tava ficando mais intenso, eu comecei a me conectar com os meus sonhos, a lembrar dos meus sonhos, que eu já tinha tido, e naquele momento eu não só lembrava como também os sonhos começavam a entrar no meu consciente e eu revivia os sonhos, acordado mas revivendo o sonho. Como se a minha consciência estivesse dentro da subconsciência. E esse processo foi aprofundando e momentos depois eu tava em uma paisagem de um sonho que tive, mas ela foi se transformando, em uma paisagem noturna, um céu estrelado, e eu me vi assim completamente fora de mim. Como se eu não fosse eu, como se eu fosse algo com uma consciência maior do que eu mesmo. E foi um momento que eu tive muita informação sobre minha alma, a história da minha alma, de por onde eu tinha passado, o que eu tinha vivido, o que é que eu tinha feito, inclusive em outros mundos. Vi com bastante clareza dentro da minha alma, a questão da sombra e da luz e como isso constitui a questão do que a gente é, a natureza mais profunda do nosso ser e esse momento assim me trouxe vários “insightssobre isso, sobre a essência. E tudo pareceu tão pequeno, a vida, a existência, o meu corpo, tudo assim pequeno em relação ao que a gente é, ao que a nossa alma é. Fiquei muitos dias nesse processo, vivendo, sentindo como se eu tivesse com a minha consciência Em outro nível de expansão, como se eu tivesse conectado com o meu eu superior. Passei alguns dias recebendo informações, e depois foi voltando ao normal, foi um momento que eu recebi muito conhecimento sobre mim mesmo.”

Perguntei sobre o começo e as dificuldades que ele poderia ter passado no início da formação da Morada da Jurema.

“Desde que a gente começou é um trabalho que vem crescendo, ele tem sempre melhorado um pouquinho mais, mas é um trabalho que você faz com algumas dificuldades. Não é fácil você começar um trabalho desse tipo. Quando você recebe esse tipo de chamado e resolve seguir, você sempre tem muitas dúvidas, a gente está muito preso a muitas concepções do mundo, ao nosso ego, a várias coisas que tornam tudo mais difícil de discernir, de fazer. Então, isso é sempre a dificuldade de fundo, mas hoje em dia tá mais tranquilo. Com as pessoas sempre tem algumas dificuldades, o que é que eu posso relatar de maior desafio? A gente, quando iniciou o trabalho, a gente optou por fazer desde o início a Morada da Jurema como uma associação, fazer um processo mais coletivo, em que as pessoas participassem mais, e a gente escolheu esse formato. Não existia intenção, eu particularmente não tinha a intenção de ser guru, de ser chefe, de mandar em ninguém. Mas eu diria que de forma geral hoje algumas pessoas tão junto, que a gente tem construído junto esse trabalho. E especialmente o trabalho de Jurema, é um trabalho que pra nós tem sido muito especial, por que é um trabalho construído de forma muito intuitiva”

O professor eduardo Vivian revela que o xamanismo, o tornou uma pessoa mais conectada com a espiritualidade, mais acesa, ajudando bastante a compreender seus sentimentos, suas questões internas, sua sombra. Ele adquiriu um conhecimento maior sobre si. “Aprendi sobre o significado do que é o amor, estou aprendendo, mas aprendi um pouco melhor, e aprendi mesmo, mais profundamente, o que é que são as medicinas, o que elas fazem com a gente, qual é a ação, o que trazem, o que promovem, o que significam espiritualmente. Essa compreensão depois que eu entrei no xamanismo é uma compreensão que aumentou. É uma parte de mim, uma parte do meu coração, nesse processo de entrega é como se um pedaço meu estivesse lá e um pedaço da morada dentro de mim.”


O social


A Morada, que se localiza em uma zona um pouco afastada da cidade, convive com uma comunidade de agricultores, moradores do Baixio dos Oitis. E há uma relação recíproca de auxílio dos moradores e dos associados ao espaço.

“A gente tem bastante interação com a comunidade, eles aparecem lá para nos visitar, nem só em dia de trabalho, às vezes durante a semana, se eles veem que tá chegando alguém, eles vão lá visitar conversar e tal, o pessoal brinca, pergunta - ‘vai ter as músicas?’ e tal, por que as pessoas ouvem por perto, a gente toca maracá, tambor, violão. Algumas pessoas já participaram do trabalho, eles nos ajudam nos trabalhos de manutenção, a nossa relação é boa com a vizinhança.”

Além desse contato familiar, também é proporcionado uma expansão de horizontes e de oportunidades, tanto no lado espiritual, quanto material. Recentemente, os associados a Morada da Jurema desenvolveram um projetos com a população de “Quintais produtivos”, vinculado a Universidade Federal do Cariri (UFCA). O projeto consiste em uma organização, acompanhamento e capacitação das pessoas para desenvolverem em seus quintais o básico da subsistência.


 
 
 

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