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Bonecos, retalhos e resistência

  • Foto do escritor: memoriaskariri
    memoriaskariri
  • 16 de set. de 2020
  • 7 min de leitura

Guilherme Figueirêdo



Ela vive entre suas criações na calçada de uma casa simples no bairro Tiradentes. São bonecos grandes e pequenos e uma variedade de produtos artesanais. Conheça a história da artesã Vilani Borges.


Quem passa pela rua Martiniano Santana, no bairro Tiradentes, em Juazeiro do Norte, não pode deixar de notar que em meio às pequenas casas de portão e janela simples, como é comum nos bairros periféricos, existe uma pequena placa escrita à mão “Bazar e Artezanato”, na casa de número 74, onde dona Vilani mora sozinha. Aos 67 anos de idade, ela entende a arte de confeccionar bonecas de pano como uma forma de se manter entretida diariamente.


Ela expõe as bonecas na sua calçada, logo nas primeiras horas da manhã. Fica ali sentada costurando seus panos e escutando o programa do Padre Reginaldo Manzotti pelo rádio. Observa o movimento da rua, as crianças que passam para a escola acompanhados de seus pais, os carros apressados e as pessoas com seus dramas diários. Ali, a artesã consolida seu processo de trabalho - confeccionando novas bonecas -, uma criação que suplementa sua fonte de renda.


Arte da Costura


Quando veio morar em Juazeiro do Norte, em 1972, Vilani Borges da Costa deixava um Iguatu devastado por uma enchente que destruiu a Vila Neuma, localidade onde morava com seus familiares. Como em um êxodo rural, sua família veio para Juazeiro, uma cidade maior, em busca de melhores oportunidades de vida. Desde então, já morou em dois bairros da cidade: no João Cabral, primeiramente, e agora no Tiradentes.


Dona Vilani usa a calçada da casa para expor sua arte como em uma vitrine. Além disso, sua casa também funciona como um brechó popular. São peças doadas pela comunidade, embaladas em sacolas lotadas - roupas, sapatos, chinelos, principalmente. E muitos retalhos para ela confeccionar suas bonecas e outros produtos artesanais. Tudo é vendido a preços acessíveis.


Os bonecos de pano têm o tamanho de uma pessoa e, sem dúvida, são os que mais chamam a atenção dos que passam pela calçada de dona Vilani. Muitos se tornaram seus fregueses. Em meio à risadas, ela lembra de uma mulher que se espantou pela presença dos bonecos em sua calçada. Como vinha distraída, acreditou, num primeiro momento, que os bonecos nos bancos eram pessoas de verdade. Logo, imaginou o pior: um velório na casa da artesã. Ao se aproximar da casa, percebeu melhor os bonecos e riu da situação. Dona Vilani achou muito engraçado e deu graças a Deus, eram apenas suas bonecas, e não seu funeral.


Além dos bonecos, ela confecciona tapetes de fuxico, bichinhos de pelúcia para encostar nas portas de casa, tapetes de retalho, guardadores de sacola e bonecas pequenas, que também compõem o seu catálogo. Embora bonecas sejam vistas como um brinquedo, geralmente a arte de Dona Vilani tem um destino diferente: a decoração.


Por exemplo, o mês de Junho traz consigo as festas juninas e as bonecas de dona Vilani ganham uma atenção especial nesse período. Ela conta que são compradas em maior número, nessa época do ano, principalmente por escolas para enfeitarem os arraiais das crianças. Em geral, os colégios compram duas bonecas grandes: um homem e uma mulher e montam um cenário composto por um casal caipira.


Os preços também são variados e se encaixam nos diversos orçamentos da clientela. As bonecas pequenas variam entre 5 a 10 reais, um presente diferenciado para crianças. Já os bonecos grandes, devido à sua dificuldade de fabricação e a suas diferentes finalidades, encontram-se numa faixa de preço bem maior, entre 150 a 180 reais. No mais, tudo é barato. Os encostos de porta custam 5 reais e os guardadores de sacola, 15.


A calçada da casa da artesã já consolidou-se como um ponto de vendas. Por isso, dona Vilani teve a ideia de vender também produtos variados a fim de aumentar a renda. “E tem lambedor pra vender também, fiz ontem pra vender, e tem tempo que aqui tem doce de gergelim, doce de mamão, tudo que eu faço e boto aqui na porta e vende tudo” - disse ela, apontando para três garrafas do mel artesanal expostas em uma mesinha vizinho a ela.


Processo artístico


Costurar não é algo fácil. A arte de confeccionar objetos através de pano requer tempo e muita dedicação. De maneira geral, a atividade é passada através da família, geralmente de pais para filhos. Porém, com Dona Vilani isso foi diferente. A artesã fala com muito orgulho que tudo que ela sabe fazer hoje, aprendeu sozinha, apenas observando outras pessoas trabalharem. Ninguém pegou na sua mão, pôs a agulha e lhe guiou entre os panos.


Com apenas seus olhos atentos nas mulheres que faziam costura, a artista desenvolveu seu trabalho. “De primeiro eu fazia só tapete. Mas aí agora é tapete, é boneca, é bonecão, é tartaruga, é almofadinha de escorar porta, é sofazinho, é cobra de tapar brecha de porta.

A confecção dos bonecos veio mais tardiamente, mas também desenvolveu-se com independência de ensinamentos. Ela conta que uma vez, assistindo um programa na televisão no canal da TV Diário, viu bonecos de pano serem exibidos por artista de Fortaleza e aquilo a inspirou. Fascinada pelo tamanho e pela beleza deles, Dona Vilani enxergou ali uma oportunidade de expandir sua arte e seu trabalho.


“ Foi na TV Diário, mas não da Garra das Patrulhas, não. Foi um programa que o homem saiu fazendo uma apresentação com bonecos. Não sei se foi num programa de brega, parece que foi, no Programa do Silvino Neto. Aí eu vi os bonecos e eu olhei bem olhado e disse: eu vou fazer boneco grande, e fiz, eu fiz e tô fazendo!”


Dona Vilani, ainda muito feliz por falar de sua eficiência, diz que certa vez, sua vizinha a mostrou um pequeno sofá de encostar portas - desses que se vê nas casas das pessoas. E para ela, perceber aquilo foi o suficiente. A beleza a encantou, a inspiração bateu na porta e, o mais rápido que pôde, suas mãos começaram a costurar. E foi um sucesso. Todo mundo que passava se encantava com a arte simplista da senhora e não resistia em levar uma lembrancinha daquelas para sua casa.


O processo artístico da confecção é trabalhoso. E torna-se ainda mais complicado quando estamos tratando de uma senhora que faz tudo sozinha. Dona Vilani conta que os grandes bonecos de pano, os que geralmente atraem mais a atenção dos passantes, demoram cercas de três dias para serem finalizados e, devido ao seu tamanho, necessitam que ela fique em pé ao lado da mesa da cozinha, onde eles são costurados de maneira bem dedicada.


De origem simples, e dependente de uma aposentadoria pequena que é rapidamente destinada à quitação de dívidas e contas mensais, a artesã agradece as pessoas que doam roupas e tecidos afins. Segundo ela, em um mês com muitas doações, seu único investimento para comprar materiais é destinado a adquirir a tinta para pintar os olhos e as bocas das bonecas e as diferentes linhas e agulhas que ela usa. E isso, para ela, é um dos fatores que mais a incentiva financeiramente para continuar seu artesanato.


Fé e Esperança


Além de sua arte, a religião também está muito presente no dia a dia de Dona Vilani. Ao entrar em sua casa duas coisas são facilmente perceptíveis logo no primeiro cômodo: as bonecas de pano e os itens religiosos. Estátuas de santos feitas de gesso, uma grande bíblia com um terço ao seu redor estão localizados em uma espécie de altar na sala de estar. Nas paredes, crucifixos de Jesus Cristo, quadros da Virgem Maria, do Padre Cícero e de alguns papas da Igreja Católica dão vida àquele cômodo.


Durante a entrevista, a artesã escutava um programa católico, atividade que tem como um hábito. Típico das senhoras nordestinas, Dona Vilani anda com um rosário no pescoço, utilizando-o como colar. Quando questionada sobre Deus, seus olhos se arregalaram com um certo espanto, como se a ousadia de ao menos cogitar fazer essa pergunta tornava o questionamento algo estúpido, pois nas entrelinhas de sua fé, a importância de Deus é inquestionável.


Desvalorização e dificuldades


A fala de Dona Vilani carrega um ar de felicidade que só as pessoas mais simples conseguem expressar. Apesar das dificuldades de ser uma mulher idosa que mora sozinha e tenta vender sua arte por conta própria, ela não desanima no dia a dia e leva toda a conversa com um tom bem humorado.


Pela idade um pouco avançada, problemas de saúde já a afetam. Ela reclama da artrose a aponta para os seus pés que estão cobertos por um pomada branca cuja finalidade é diminuir a dor. A sua visão, conforme conta, também apresenta sinais falhos. Como Dona Vilani é uma senhora bem simples, que não usufrui de um grande aporte financeiro, a dependência da saúde pública para o tratamento das mazelas causadas pelo tempo se torna um processo demorado.


Ela explica que o posto de saúde do Bairro Tiradentes está sem médico para atender no momento, então resta esperar a chegada de um profissional da saúde qualificado para examiná-la ou procurar o Hospital Tasso Ribeiro Jereissati - popularmente conhecido como Estefânio, próximo ao shopping Cariri Garden e bastante distante da sua casa.


Devido à necessidade de precisão no ato de costurar, o fato de estar ficando “ceguinha, ceguinha mesmo” - como ela fala - dificulta a costura das peças. Somado a isso, as bonecas de tamanho real tornam-se, conforme sua artrose vai piorando, quase impossíveis de serem feitas, por demandarem um certo esforço físico durante o tempo de costura, que pode levar até três dias para ser finalizado.


Sobressaindo as limitações físicas impostas pelo tempo, Dona Vilani diz que a coisa que mais a desmotiva a continuar seu trabalho artístico vem da desvalorização do artesanato. Ela fala que, ao longo de seus quase 40 anos como artesã, nenhum órgão governamental ligado à cultura ou a arte sequer soube da sua existência ou tampouco procurou saber.


Além disso, a desvalorização do preço de seu trabalho é bastante desmotivador. Trabalhos como a confecção de tapetes, que levam dias para serem finalizados, custam quantias pequenas, chegando ao máximo a 20 reais. Apesar do preço já ser baixo, as pessoas ainda pedem desconto e acham que o preço pedido originalmente é alto demais. Essa prática, sem dúvidas, é totalmente desprovida do reconhecimento do esforço da artesã e da qualidade de seu trabalho.


O ano de 2019 também não foi fácil para a venda das bonecas, especialmente na época junina. Nos anos anteriores, Dona Vilani vendeu no mínimo duas bonecas grandes para os festejos de São João e São Pedro. Esse ano, infelizmente, nenhuma boneca foi vendida. O preço, que originalmente rodeava a faixa dos 160 reais, caiu para 50, mas ainda não foram vendidos.


A culpa, segundo ela, está no governo. Ela diz que o povo pobre está sem dinheiro, diferente dos ricos que passam bem. O governo, então, através de um olhar desatento à população mais pobre, e consequentemente à população artesã, sucateia as expressões artísticas que carregam no seu íntimo o que mais é verdade no povo brasileiro: a

simplicidade de fazer as coisas com amor.


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