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Linhas de vida sobre almofadas

  • Foto do escritor: memoriaskariri
    memoriaskariri
  • 8 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

Klarisse Viana


Fonte imagem: Artesol.org.br.


A cidade de Santana do Cariri, no Ceará, é conhecida por sediar o Museu de Paleontologia e o pontal de Santa Cruz. No entanto, existe um outro ponto da cidade, um pouco menos famoso, mas igualmente mágico – eu me refiro à Associação das Rendeira de Bilro de Santana do Cariri. O grupo, que está em atividade desde 2009, é localizado no centro da cidade, no Museu Histórico Casarão Coronel Felinto da Cruz Neves, espaço cedido pela prefeitura, onde funciona também a Secretaria de Cultura municipal.


Meu contato com Luíza, Toilza e Joana, as rendeiras da associação, ocorreu no final de 2018, quando fazia trabalhos de campo em função de minha monografia no curso de Ciências Sociais. Com elas aprendi muito além de uma técnica artesanal, entendi como ser rendeira é parte fundamental na construção de sujeitos cuja tessitura de vida se desenrola através das memórias de uma tradição.


Tecer renda de bilro e se empenhar em sua feitura não se relaciona apenas com a difusão da peça enquanto produto para consumo. Seu processo de feitura conta uma história, constrói uma narrativa. É como se ao tecê-la, as tradições que a envolvem continuassem também a serem tecidas juntamente com a história dos antepassados que se valiam dessa mesma técnica, unindo seus fios à história da vida particular das atuais rendeiras e também da história do lugar onde toda a renda se desenrola.


Joana, Toilza e Luíza, ao se posicionarem como rendeiras, passam a fazer parte de um processo cultural de origem distante que lhes permite modelar suas próprias vidas na cadência do bater dos bilros, do trançar das linhas, dos desenhos da renda. Fazer-se rendeira enquanto ofício que mescla criatividade artística e trabalho, promove um rearranjo não apenas na atribuição de novas singularidades ao trabalho, com renda adaptando um fazer tradicional a outras formas de pensa-la em um contexto contemporâneo, mas edita dia após dia a vida de quem se dedica a esse trabalho e a constante construção pessoal de sujeito fazedor de renda de bilro.


Fazer-se rendeira envolve mais do que tornar o corpo apto para o aprendizado das técnicas de trançar os bilros, mas está relacionado com a criação de vínculos entre trabalho e vida cotidiana. Fazer renda vai além de uma saída econômica na vida familiar, uma vez que demonstra o prazer dessas mulheres pelas belezas da produção diária do artesanato.


Algo importante que percebi em comum quando as três falam de suas respectivas experiências em suas formações como rendeiras é o aspecto geracional concernente na aprendizagem da técnica, ou seja, todas as gerações de rendeiras que as antecederam e que possibilitaram que hoje estas sejam detentoras desse saber específico, não necessariamente me referindo a geração familiar, mas sim a uma perspectiva de referências históricas que vão sendo ressignificadas conforme as narrativas vão sendo elaboradas enquanto as rendas são tecidas.


Analisando por esse lado, ser rendeira não é apenas dominar a técnica de fazer renda, mas muito mais do que isso, cultivar em si tanto amor por tal saber e seu exercício que a transmissão dessa técnica se torna uma necessidade, o que demonstra também a preocupação com a permanência dessa cultura e constante construção de novas narrativas em torno da técnica. Todas elas me relataram do medo dessa cultura acabar se perdendo uma vez que, hoje em dia, quem por ventura se interessa pelo rendar dificilmente coloca tal exercício para frente como uma prática diária quando percebe que os lucros do trabalho não são imediatos.


O contraponto entre várias mulheres da cidade de Santana que sabem fazer renda, mas não fazem disso uma atividade cotidiana, com as mulheres que compõem a associação diz que para ser rendeira é necessário muito mais do que ser detentora do conhecimento de como compor pontos, mas é preciso a disposição para o contínuo aprendizado. Para muito além da técnica, do exercício de um ofício, ser rendeira é ter o rendar imbricado em seu cotidiano, é o considerar como parte fundamental da própria vida, de ser narradora de um processo cultural histórico e se colocar dentro dele adicionando suas próprias idiossincrasias. Ser rendeira é algo que se aprende com a prática diária, é um exercício de narrar sua própria vida a partir de uma experiência estética.


Se, por um lado, as rendeiras da associação demonstraram certa frustração com as mulheres da cidade que têm domínio da técnica e não a colocam em prática diariamente e também com a geração mais nova que nem sequer tem o interesse de aprender, por outro, elas se sentem muito felizes quando alguém aparece na associação com o interesse de falar sobre renda e sobre suas vivências pessoais e mais ainda quando há o interesse em também aprender a fazer renda. Este não é um processo vertical, hierárquico, onde quem domina a técnica ensina e, a partir disso, o aprendiz reproduz os saberes e os gestos adquiridos, mas uma via de várias mãos pavimentada por trocas não necessariamente sobre renda de bilro, mas sendo ela a moldura para conversar sobre a vida e sobre os percursos cotidianos. No final das contas, é isso que move o contínuo tecer da renda, são as linhas que se entrelaçam umas sobre as outras, alargando os caminhos do que compõe a tradição.


Certa vez, voltando de Santana do Cariri depois de passar o dia inteiro na associação tentando aprender a manipular bilros sem o menor jeito, característica própria de mãos iniciantes, lembrei de Clarisse Lispector em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres onde ela narra o mistério de encontrar a si mesmo em face do outro. Pensei em tudo que, até aquele ponto, eu havia ouvido das rendeiras sobre suas trajetórias pessoais, sobre suas relações de trabalho pautadas na afetividade e na construção dessas mulheres enquanto sujeito no mundo, uma vez que tecem a si mesmas em cada ponto de renda. Desde então, fez mais sentido o que Clarisse diz sobre a entrega de si ao movimento infinito que tudo apanha e tudo tece.


 
 
 

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