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O Crato encantando – Memórias, histórias e narrações de uma centenária

  • Foto do escritor: memoriaskariri
    memoriaskariri
  • 13 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

Fernanda Simplicio


Estranhamento na câmera – Dona Alzira – 04/11/2019 - foto: Fernanda Simplicio


Gostaria que todos viajassem aqui comigo em um Crato antigo, bem diferente

do que é visto. Eu vou contar, da forma que ouvi, a história oral do Crato da

minha avó. Mas antes, deixe-me apresentá-la:


Dona Alzira nasceu em 1918, em Crato. viveu longevos 100 anos e faleceu em

março de 2019. Enfrentou de todos os perrengues que uma sertaneja poderia

enfrentar. Criou seus 11 filhos com sacrifício. Filha legitima do Cratinho de

Açúcar, não hesitava em passar seus dias contando histórias que ouviu, inventou

e histórias que viveu desse lugar. Ela era uma mulher de costumes, manias e

sem papas na língua. Ela tinha 3 paixões cratenses que não poderiam nunca ser

criticadas – a Rádio Educadora do Cariri, Nossa Senhora da Penha e a Praça da

Sé.


Viveu seus últimos anos de vida em uma casa com um alpendre amarelo, no

sitio, em Barbalha. E isso amargou suas vivências, pois teu sonho de vida era

voltar a morar em Crato, mesmo que isso custasse seu tempo na Terra. Não

deixou heranças, apenas histórias e memórias.



Dona Alzira e seu Alpendre – 04/11/2018 – seu aniversário – foto: Fernanda

Simplicio


Eu sentava nesse alpendre e passava, religiosamente, todas as minhas tardes

de domingo com a minha avó. Mais fiel que a minha presença era a sintonização

na rádio Educadora do Cariri pela manhã. Já sabia que era hora de acordar

quando escutava o som da missa.


Nesses meus repousos ao seu lado, escutei de tudo. Conheci um Crato que tinha

meninas de saias godê de pregas, o medo dos moradores do sítio do Major

Filemon e as tradições de Nossa Senhora da Penha.


O CRATO ENCANTADO DA CABEÇA DA MINHA AVÓ:


Peço à licença poética para escrever conforme a língua oral, do jeito que ela me

contava E adianto que lá existiam lobisomens, viagens, retornos de outro mundo

e muita fé.


Uma delas é a história do violeiro - Certa vez, um cumpadre chamou o outro

pra tocar uma viola de noite em sua casa. Chegou no caminho, deu um negócio

nele lá e apareceu um homem em um cavalo branco e levou ele. Quando o

cumpadre acordou, percebeu que estava em um lugar cheio de forró, muié muita

e tudo dançano...


E o Cão apareceu e chamou ele, logo ele se aluiu que tava no inferno. Como o

homem era violeiro, o Cão logo atentou e propôs uma aposta: botou o homem

pra tocar junto com o povo do inferno, quem cantasse a cantoria, tava livre. E

quem perdesse, ficaria lá pra sempre.


Quando o violeiro percebeu que isso era uma cilada e que iria perder a cantoria,

puxou o ofício de Nossa Senhora e cantarolou. O Cão ouviu e falou:


“- Vai tê embora, vai tê embora. Isso não se toca aqui não.”


E em um papoco, o violeiro apareceu na beira da estrada, como se estivesse

indo para a casa do cumpadre. Assustado, deu meia volta e foi pra sua casa.


Outra história que envolve passagem para o inferno é a da mulher da vida do

Lameiro - Havia uma mulher que trabalhava num bordel... E lá, ela trançava os

longos cabelos das moças, pintava as unhas de vermelho e tomava umas

cachaças. Certo dia, essa moça a caminho do bordel encontrou o Cão, que a

levou pro inferno.


Ela viu de tudo mais horroroso, o chão ardendo em fogo, tudinho vermelho,

como fosse sangue. Mais pra frente, tinha um monte de muié dendi uma caixa,

tudo se batendo. O Cão mandou a mulher da vida trançar os cabelos cheio de

sangue dessas mulheres. Ela respondeu:


“ – Mas eu não sei fazer isso não, sô. Nunca trancei cabelo alheio”.


O Cão, cheio de ódio, olhou pra ela e disse:


“ – A rapariga não tem respeito, tu faz isso todo dia, vai tê e e faz. Não me

embrome, faça!”


Aos prantos, ela fez. Depois, o Cão butou ela pra caminhar mais dentro do

Inferno. Ela viu um caldeirão cheio de peitos borbulhando, pegando fogo. O Cão

pegou um copo cheio de peitos pulando e disse:


“ – Beba isso. Tu não venha me dizer que não bebe porque eu vejo tu todo dia

descendo à goles bebida quente!”


Ela respondeu:


“ – Eu não bebo não sinhô, nunca bebi isso.”


O Cão já tava farto disso e começou a empurrar a bebida perto da boca dela.

Quando ela percebeu que não tinha saída, rezou pra Mãe da Penha e tornou a

Crato. No dia seguinte, a prostituta estava com a boca toda cheia de feridas,

como queimaduras. Desse dia em diante, ela se tornou beata e nunca mais

voltou ao bordel.


Pra finalizar - o rapaz que estudou pra ser padre e virou alma penada.


Um moço novo estudava pra ser padre e quando tava perto de receber a bênção

final, se enfezou e queria raparigar. Foi zuadar com seu pai e nessa discussão,

teve um treco do coração e morreu. Assim virou alma penada, com a missão de

passar 1 ano em cada lugar pra atormentar a vida de quem vivesse por lá.


Certo dia, ele chegou na casa da família do sr. Manuelzinho, lá nas Batateiras.

A alma penada fazia de tudo. Rebolava os menino véio no mato, tirava o sono

do sr. Manuelzinho, mexendo nos seus pés e atormentava todas as renovações

ao redor dessa casa. Quem andasse pelos matos chegava a ouvir ele dizer:


- Eu ando pra todo canto, mas não ando no Juazeiro, porque acolá tem o Ciço e

não ando no centro do Crato porque lá tem Quintino. Então eu fico por aqui

mesmo.


Confesso que tenho muitas histórias para contar da minha avó. Seu amor por

cada novena de Nossa Senhora da Penha e o seu gosto peculiar pelas músicas

sertanejas, entre elas, Telefone Mudo, do Trio Parada Dura. Ela contava que só

iria morrer no dia que me ouvisse falar “no rádio da Educadora”.


Um dia antes da sua morte, ela me pediu para ligar o rádio no quarto do hospital.

Não tinha rádio nenhum lá. Improvisei, impostei a voz e comecei a narrar um

programa de rádio. Baixinho, ela me pediu: “-toca telefone mudo”.


Cantei para ela e ela me acompanhou. Os enfermeiros pararam no corredor e

cantaram comigo. Quando terminei, ela disse: posso morrer em paz, minha fia

radialista falou lá na minha rádio Educadora.


Poucas horas depois... a mulher que tinha uma promessa de vestir em todo dia

20 uma roupa preta para homenagear o Padre Cícero nos deixou.



O amarelo desgarrado e o alpendre vazio – 20/04/2019 – 30 dias da sua morte - foto:

Fernanda Simplicio


Olhar para aquele alpendre e não ouvir mais nenhuma história ecoar me

dilacerou. O vazio da cadeira de balanço e o amarelo mostarda queimava muito

mais no coração do que à minha vista. A sua voz se foi.

 
 
 

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